Meu império romano
TW/ Alerta de gatilho: Transtorno alimentar
Uma das minhas memórias mais antigas, lá em 2003, foi de uma festinha a fantasia na minha escola Mundo Encantado no dia do circo. Minha mãe, acompanhada da minha tia provida de muita habilidade manual, construiu pra mim uma fantasia de palhaça toda de E.V.A. que rende até hoje um causo familiar. Eu participei, dei meus pitacos, e fiquei muito feliz com a fantasia, que ostentei na festinha uns dias depois.


Chegando lá na escola, percebi um padrão: todas as meninas estavam fantasiadas de bailarinas. Talvez numa mistura de pouca criatividade e de pouco tempo, junto da facilidade de já ter a roupinha disponível deu nisso (imagino que aquelas meninas faziam aula de balé na época). A verdade é que achei todas lindas, fofas, femininas, e lá estava eu maquiada de palhaço! Foi a primeira vez que eu me senti inadequada, lembro da sensação até hoje: não contei a ninguém, nem chorei, nem nada, mas senti uma angústia que não lembro de ter sentido antes daquele dia.
No auge da minha maturidade dos 3 anos de idade, segui o baile e ficou tudo bem. Acho que na verdade eu não soube elaborar aquela sensação na época. Também rolou o fato de que minha melhor amiga também pintou o rosto com maquiagem de palhaço pra abrilhantar o tutu dela. Hoje eu acho a situação engraçadinha, claro e já superei. Vendo as fotos pra postar aqui, vi que também tinha outra criança de palhaçinha, algo que de forma alguma está registrado na minha memória.
Mas vamos ao título.
Caso você tenha vivido numa caverna nos últimos tempos vou lhe explicar: ano passado viralizou um TikTok de uma moça falando “não pergunte ao seu marido com que a frequência ele pensa no Império Romano por que a resposta é assustadora”. Isso virou uma trend com pessoas perguntando aos homens, e eles respondendo — com uma estranha naturalidade — que pensavam sobre isso todos os dias, ou semanalmente, ou sempre etc. Depois, o “Império Romano”, começou a fazer parte do dicionário internetês significando aquele pensamento que acompanha a gente com uma certa frequência sem (necessariamente) haver um gatilho externo. Como se fosse aquela abinha que fica aberta na nossa mente, sabe? A partir daí acabaram viralizando outros vídeos de pessoas trazendo à tona seus diferentes impérios romanos.
Um desses vídeos virou meu império romano (haha). A menina dizia “My roman empire is the constant desire to be skinny”1. Apesar de ter plena consciência da minha relação com meu corpo e já lidar com isso em terapia há uns bons anos, ler aquilo, naquele momento, foi quase um balde d’água. Uma sensação de frustração, que estava meio adormecida, apareceu. Foi uma revelação a mim mesma: a abinha que está aberta na minha cabeça ocupando uma certa energia há tantos anos é querer ser magra. E não é só na minha: mesmo dentro da bolha, aquele vídeo viralizou com 3 milhões de likes e dezenas de cópias por aí falando mais ou menos a mesma coisa. “O emagrecimento é o império romano das mulheres”.

Aquela sensação de angústia pela inadequação me acompanhava desde aquela minha memória mais antiga, mas com o tempo ela foi tomando uma forma mais socialmente desenhada. Alimentada pela leitura assídua da Revista Capricho e pelo gosto por RBD e consequente inveja da barriga da Anahí (que mais tarde descobrimos ser fruto de anorexia), crescia minha nóia por como meu corpo se apresentava para os outros. Inicialmente veio como uma comparação com as outras meninas: entre os sete e os dez anos eu costumava ser mais alta e maior que as outras meninas da minha idade. Já olhava meu corpo e fantasiava sobre tirar um pedaço das minhas coxas pra que elas fossem menores.
Depois, com a puberdade, algumas coisas foram se intensificando, outras foram mudando de lugar. Minha relação com exercícios físicos se tornou uma punição: a natação que eu tanto gostava saiu da vez por deixar meu corpo muito exposto às críticas e deu lugar ao basquete que, “até que era legal”, e gastava bem mais calorias, ainda mais dentro de uma camiseta três vezes maior que meu número. Voltava do treino e ia analisar no espelho aquele meu corpo que não emagrecia.
Além das críticas, com a idade meu corpo ficou passivo de sexualização. O short do basquete era curto demais, o sutiã marcava demais a camisa da escola, meus peitos eram grandes demais pro meu tamanho, os biquínis eram pequenos demais pra mim, as outras meninas eram magras demais, e tudo estava totalmente fora do meu controle. Comecei a desejar conseguir desenvolver um transtorno alimentar imaginando que só assim as coisas melhorariam pra mim. Não consegui, por sorte.
Depois, entrar em contato com novos discursos que me fizeram conseguir problematizar um pouco dessa situação foi me levando a uma sensação de contradição. Chegou grande culpa montada feminismo liberal: eu não consigo amar meu corpo, e o problema agora é este. Com o tempo consegui elaborar algumas perguntas (mas nenhuma resposta) e um dos grandes questionamentos que levei pra terapia: Quando meu corpo ia ser meu? Ainda não tenho a resposta.
Tem algo do lado de fora que faz com que nossa cabeça — de mulher, digamos assim — não consiga ser ocupada com algo tão simples e desconexo da realidade quanto o Império Romano (dessa vez, literalmente). E, apesar de controvérsias, concordo com essa frase de pára-choque de caminhão da escritora Naomi Wolf: a cultura da dieta é uma forma de controle social das mulheres. A pressão estética e a imposição da magreza é um mecanismo da exploração dos corpos em seu sentido mais amplo.
Pensar (e escrever) de forma mais racional sobre esse papo me lembrou um texto de Virgínia Woolf que conversa comigo em diversos momentos. Em Profissão para Mulheres, Virgínia faz uma fala para a Sociedade Nacional de Auxílio às Mulheres sobre sua experiência profissional como escritora e, nesse processo, sua necessidade de matar o que ela vem a chamar de Anjo do Lar (parafraseando um poema de Coventry Patmore) para conseguir seguir com sua atividade:
“E, quando eu estava escrevendo aquela resenha, descobri que, se fosse resenhar livros, ia ter de combater um certo fantasma. E o fantasma era uma mulher, e quando a conheci melhor, dei a ela o nome da heroína de um famoso poema, “O Anjo do Lar”. Era ela que costumava aparecer entre mim e o papel enquanto eu fazia as resenhas. Era ela que me incomodava, tomava meu tempo e me atormentava tanto que no fim matei essa mulher. Vocês, que são de uma geração mais jovem e mais feliz, talvez não tenham ouvido falar dela – talvez não saibam o que quero dizer com o Anjo do Lar. Vou tentar resumir. Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. Se o almoço era frango, ela ficava com o pé; se havia ar encanado, era ali que ia se sentar – em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo – nem preciso dizer – ela era pura. Sua pureza era tida como sua maior beleza – enrubescer era seu grande encanto. Naqueles dias – os últimos da rainha Vitória – toda casa tinha seu Anjo. E, quando fui escrever, topei com ela já nas primeiras palavras. Suas asas fizeram sombra na página; ouvi o farfalhar de suas saias no quarto. Quer dizer, na hora em que peguei a caneta para resenhar aquele romance de um homem famoso, ela logo apareceu atrás de mim e sussurrou: “Querida, você é uma moça. Está escrevendo sobre um livro que foi escrito por um homem. Seja afável; seja meiga; lisonjeie; engane; use todas as artes e manhas de nosso sexo. Nunca deixe ninguém perceber que você tem opinião própria. E principalmente seja pura.”
Escrever esse texto é uma tentativa de reelaborar essas companhias. Venho sendo assombrada pelo Anjo do Lar, e, atualmente (novamente) pelo anjo da obsessão pela magreza. Sempre que penso que finalmente matei e enterrei esse, ele ressurge pra mais uma sequência de assombros. Mas, dessa vez, Virgínia me faz por perspectiva: Quantas coisas a gente estaria fazendo se a gente não tivesse que lidar com (e quem sabe, matar) esses fantasmas periodicamente?
Link do vídeo (parece que agora você tem que ter conta no app pra conseguir assistir :///) https://vm.tiktok.com/ZMrYL5CXm/